Roger Waters – Us+Them Tour

Na última terça, dia 30, assisti ao show do meu maior ídolo Roger Waters, em Porto Alegre. Tratou-se do show mais aguardado da minha vida. Digo isso, porque os ingressos foram vendidos, e consequentemente comprados, em dezembro do ano passado, então, tivemos uma janela de 10 meses, entre a compra e a entrega. Mas valeu a pena. Digo mais, valeu a galinha inteira.

Há 10 meses, creio eu, quando a mega turnê teve seu agendamento na América Latina, incluindo o Brasil, ninguém deve ter colocado na balança o turbulento período eleitoral brasileiro, que infelizmente, foi mais valorizado pela mídia que o próprio espetáculo em si. Não me entendam mal, eu compactuo com grande parte do ativismo do artista, apenas acho que o foco da imprensa e dos seus fãs acabou se perdendo em meio ao caos político.

Primeiro ponto, em sua quarta passagem de turnê no Brasil, ele proporcionou a sua mais longa passagem por aqui, nada menos que 8 apresentações, em sete cidades, contemplando quatro regiões. Ainda, relembrando, as turnês anteriores: In the Flesh (2002) e The Wall Tour (2012), privilegiaram apenas São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, enquanto Dark Side of the Moon (2007), apenas Rio-SP.

Outro ponto importante que não deveria nem estar nesse texto é que, um show de Roger Waters sempre teve, como marca registrada, o ativismo humanitário. Logo, isso não deveria ser novidade para ninguém que tem o mínimo de conhecimento sobre o artista. Aliás, tornar isso notícia, soa extremamente ridículo ridículo. Mas vamos lá, com o contexto eleitoral em fervor, a manchete sobre o posicionamento do músico acabou ganhando força na mídia e fora dela, inclusive, com um processo instaurado pelo TSE por campanha eleitoral ilegal. Porém, como pretendo discorrer no texto mais a frente, ir ao show de Waters e se abalar ou se entusiasmar com um comentário sobre o Presidente Eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, é digno da pior metáfora da história: “Como ter sua casa invadida e sua família estuprada e registrar ocorrência por um eletrodoméstico roubado”, autor desconhecido.

Mas vamos falar sobre o show-evento da última terça.

“The sun is the same in a relative way but you’re older,
Shorter of breath and one day closer to death.” (Time – Waters, 1973)

Para quem é iniciado nos shows de Waters, Us+Them Tour não trouxe grandes novidades, como a letra de Time acima, o sol é relativamente o mesmo, mas estamos mais velhos. O que fica óbvio é que Waters recicla seu material mais valioso para formar uma storytelling para o seu mais alto grito de resistência ao totalitarismo e ao terrorismo de estado. Assuntos que já haviam sido tratados de forma pontual, principalmente na turnê The Wall.

Em uma praia paradisíaca, onde nada além das ondas e o vento influenciam o ambiente, o show começa. Duas canções clássicas do álbum Dark Side of the Moon (1973), obra prima do Pink Floyd, banda que Waters fundou e foi a maior referência criativa. A instrumental Speak to Me, chama as atenções ao palco, que se ilumina com a banda para executar Breathe, mostrando na gigantesca tela palco, imagens do universo em formação, destoante com um corpulento globo metálico que marca a sua presença engolindo o ambiente. A abertura é ainda composta de mais uma música, que se contrapôs a linda harmonia inicial, trazendo caos à paisagem. One of These Days, do álbum Meddle, de 1971, foi a música mais antiga executada na noite. A suíte instrumental enérgica, foi apresentada com perfeição como foi gravada há quase 50 anos, no sexto disco de estúdio da banda.

A atmosfera sombria logo dá lugar a euforia com a quarta música, o megahit Time, trazendo a clássica animação dos relógios emergindo da tela para o público, utilizado pela banda na década de 70, quando promovia seu maior clássico mundo afora. A força de Waters para cobrir os vocais de David Gilmour é válida, já que o público cumpriu sua parte em cantar junto a monstruosa canção sobre o tempo, precedida de Breathe Reprise, tal qual no disco, entoadas pelo guitarrista Jonathan Wilson, de forma muito competente.

Apresentação de Time no show teste da turnê, em outubro de 2016

Mais uma vez, respeitando a sequência do disco Dark Side… , as backing singers Jess Wolfe and Holly Laessig of Lucius assumem o protagonismo executando de forma esplêndida os solos vocais de Clare Torry, em The Great Gig in the Sky, alterando um pouco a composição original, para deixar o dueto equilibrado. As cantoras, que se apresentam na turnê com as mesmas vestimentas e perucas, tem a sua imagem sobreposta na tela palco como uma composição com os elementos da natureza, outra marca herdada e respeitada das apresentações originais da banda nos anos 70.

A natureza bela e a sonoridade deliciosa de The Great Gig… dão lugar a outra suíte de difícil absorção aos não iniciados. A pessimista Welcome to the Machine, do álbum Wish you Were Here, começa a ser tocada em uma versão diferente a do estúdio próxima do formato apresentado em In The Flesh, com ritmo de bateria para dar andamento, mas mantendo os vicerais solos de teclado sintetizados, executado pelo competente Jon Carin, parceria de Waters em todas suas turnês. E, que inclusive, esteve ao lado do Pink Floyd, nas apresentações que sucederam o lançamento do disco The Division Bell, de 1994, registrado no clássico show P.U.L.S.E..

Terreno pronto, Waters colou o bloquinho de três canções do seu mais novo disco, Is This the Life We Really Want? seu quinto álbum de estúdio, lançado em 2017, como um manifesto contra todo terrorismo de estado e ascensão do populismo autoritário, o qual ele não mede as palavras para chamar de Neo-Fascismo. Os títulos auto-explicativos provocam o ouvinte a refletir, principalmente sobre o regime apartheid instaurado em Israel sobre os palestinos, as crises de refugiados na Europa e intervenções militares norte-americanas. As canções escolhidas para o bloco foram Déjà Vu, The Last Refugee e Picture That, nessa ordem, abrindo espaço para projeções humanitárias de denuncia sobre as injustiças cometidas pela humanidade.

Waters sabe, nós sabemos, eles sabem. Tudo o que foi mostrado nas telas é frequentemente ignorado pela mídia e pela opinião pública que repudia a doença da sociedade em se focar no âmbito social e pensar no mercado. Se a economia está bem, o mundo está bem, digamos. Mas ele não deixa barato e põe o dedo na ferida que o planeta vive. Claro, isso não é de hoje, nem dessa turnê, ele sabe que o mundo vive e alarde isso em toda a sua obra, desde Dark Side of The Moon.

A desolação e a tristeza da perda se completam com a faixa-título Wish you Were Here, com uma projeção de mãos tentando se conectar, mas despedaçadas. Épico. Triste. Arrebatador.

O soundhound do estádio denuncia o hit Another Brick in the Wall – precedida de The Happiest Days of Our Lifes, todos conhecem os helicópteros chegando para vigiar os estudantes, eternos aprendizes, que estão sendo alienados pelos instrutores. O superhit da ópera rock The Wall, de 1979, é somado ao terceiro e mais violento movimento do disco Another Brick in the Wall – Part III, para dar ainda mais dimensão a música. Crianças sobem ao palco para emular o backing vocal da música, o que a equipe faz com muita competência, ainda da turnê anterior. Sob uma sobre-roupa laranja, que imita o uniforme presidiário americano, as crianças vestem uma camisa preta com a palavra “Resist” e a mesma palavra que é mantida na tela palco pós o encerramento do primeiro ato do show.

Para tornar didático, no curto intervalo de pouco mais de 10 minutos, a tela projeta diversos alienadores mundiais, incluindo Mark Zuckerberg e os Neo Fascistas atuais, que estão no poder mundo afora. Sempre com a mensagem Resist sobre tantas denúncias feitas em tão pouco tempo.

Em suas apresentações em São Paulo, o nome de Jair Bolsonaro esteve presente, sem filtros na primeira apresentação e encoberto por uma tarja com a escrita “Ponto de Vista Censurado” na segunda. Depois de dividir o público, entre aplausos e vaias, a equipe achou por bem retirar o nome, o que não fez a menor diferença ao público de Porto Alegre, que se dividiu entre o grito de guerra “Ele Não” e “Mito”, mostrando que a ignorância é a marca registrada do país do futebol (que acredita que tudo é paradoxal).

“I gotta admit that I’m a little bit confused
Sometimes it seems to me as if I’m just being used” (Dogs – Waters, 1977)

Ainda no intervalo, quatro colunas surgiram no palco. Primeiramente, mostradas na tela palco, com um estrondoso som quadrifônico ensurdecedor, e, em seguida, sobre a tela, dando uma dimensão ainda maior ao espetáculo visual e compondo o cenário para as projeções mapeadas. A “fábrica” capa antológica do disco Animals, de 1977, com seu porco sobrevoando, foi a primeira pirotecnia do show. Lembramos, que esse álbum, tem uma nítida influência do livro A Revolução dos Bichos, escrito por George Orwell em 1945, autor, que também já havia foi mencionado explicitamente, na turnê The Wall, com o seu Big Brother, do livro 1984.

Após as colunas da fábrica se estabilizarem, arrancando a terra do chão, inicia a segunda parte do show. A poderosa Dogs começa a ser tocada pela banda. A música mais longa do show, próxima dos 20 min, proporciona diversas leituras. Neste caso, o direcionamento foi aos autoritários, aos poderosos, aos formadores de opinião pela força. A projeção de um cão raivoso, permanente e amedrontador, deixa isso claro.

Em seguida, outra suíte do mesmo disco inicia. Desta vez Pigs (Three Different Ones), que utiliza a imagem do Presidente Norte-Americano, Donald Trump, para ilustrar a fala de Waters sobre anti-semitismo, xenofobia, racismo, machismo, incesto, pedefilia e outras tantas heranças deixadas por esse desgraçado que assumiu a maior economia mundial, com a promessa de construir um muro entre nações.

Ao mesmo tempo em que os solos de teclado e guitarra sintetizados ocupavam o espaço sonoro, um porco inflável – mais uma das marcas mais clássicas do Pink Floyd – era solto na plateia para ser exterminado. Nele era possível ler “Stay Human”, do doutro lado, “Seja Humano”, em uma das poucas mensagens na língua nativa que Waters trouxe. Ao final de Pigs, ainda se leu: – Trump é um porco!, onde se ouviram aplausos de todo público. Claro, o presidente dos outros a gente sabe que é um merda, o nosso, a gente defende…

Apresentação de Pigs no mesmo show no México. O show ocorreu às vésperas da eleição americana e o vídeo foi postado pelo artista no dia em que Trump foi eleito presidente.

Não satisfeito, a mensagem PIGS permanece na tela, mostrando que “eles venceram”, e outro megahit é apreserntado: Money, novamente do disco Dark Side… . Nos deixamos seduzir pelo riff de baixo e pela linda projeção, mostrando bilionários rindo, banquetes e objetos de luxo. O contraponto acontece ainda durante a canção, que muda o olhar das projeções para situações de extrema pobreza. Assistimos isso diariamente, e somos todos cúmplices da injustiça social ditada pelo mercado. O poder aos ricos e poderosos e os miseráveis, simplesmente miseráveis.

Novamente seguindo o track-on-track do Dark Side of the Moon, chega a canção Us and Then, que dá nome a turnê. Apesar de algumas licenças poéticas no vídeo, as imagens são próximas das projeções floydianas da época do seu lançamento, trazendo o embaraçado mundo, aos pequenos caminhantes anônimos do solo comum. A canção mais bela do disco de `73 deixa claro, o humanismo está presente, mas pouco representativo, numa sociedade de cães e porcos no poder. A construção da mensagem trazida pelo músico, começa a fazer sentido e a encerrar o espetáculo.

Antes do grand finale, sobrou ainda a batida pesada de Smell the Roses, outra faixa do último disco solo de Waters. Em alguns shows, esse momento teve a clássica Mother, do álbum The Wall, deixada de lado. Pelo discurso, entende-se que, talvez pela má aceitação as críticas de governo, não houvesse espaço para ela. Mas a faixa cumpriu o seu papel antes do descomunal fechamento. Ainda, sentiu-se algumas ausências no repertório, como Shine on you Crazy Diamond e músicas do chamado Early Years da banda, onde ainda contava com o controle criativo do falecido Syd Barret. Mas nenhuma ausência ou mudança no repertório comprometeu o espetáculo.

And everything under the sun is in tune
But the sun is eclipsed by the moon – (Eclipse – Waters, 1973)

Chegado o ato final, algo magnífico para entregar aos seus fãs, Waters tocou as faixas finais de Dark Side… (aqui cabe falar que, com exceção de On The Run e Any Color You Like, o disco foi tocado na íntegra no show), e além disso proporcionou uma experiência visual única, de estar dentro do prisma, a imagem clássica do álbum de maior sucesso do Pink Floyd. Arrebatador, letra e som fizeram muitos floydianos esquecerem as suas diferenças e cantares um uníssino as frases que fecham o maior disco de rock de todos os tempos. O triangulo equilátero perfeito, formado por lasers e luzes, foi ovacionado por todo o público por diversos minutos ao final da performance.

prisma

Reprodução no ápice do show com o Prisma.

Houve ainda um pequeno intervalo, para que Waters falasse ao público. Ele abdicou. Disse apenas que não queria problemas entre os fãs. Talvez, em outras palavras, ele tenha dito: desisti de vocês Brasil! Pode ser, neste momento, em outras apresentações houve até homenagens para a Vereadora Negra, Mariele, brutalmente executada no Rio de Janeiro e para o mestre capoerista Moa do Katendê, morto a facadas após uma discussão sobre política, em Salvador.

Obviamente, ele nunca pensou assim, ele só se deu por conta que esse não é o espaço de fazer valer a sua mensagem, afinal o show todo, era apenas entretenimento. Essa ironia, por mais patética que pareça, foi entendida por grande parte do público como verdade absoluta, o que me deixa revoltado, por ter uma mensagem dão urgente e tão óbvia, que não foi absorvida por muitos.

Por fim, Confortbly Numb, faixa do álbum The Wall, com seus solos de guitarra, desenhados melodicamente por Gilmour, fecharam o show com o excitasse de todos.

Após o fim da canção, a tela palco ainda se mostrou necessária, fechando o arco dramático da praia paradisíaca. Desta vez, uma mulher apareceu sentada, encarando o horizonte. Segundos depois, uma criança, também menina, apareceu e foi em sua direção. As duas se abraçaram antes do fade out. Apesar do final feliz, será que todos podem dizer que podem abraçar seus pares? Talvez a reflexão tenha sido muito pequena.

 

2 comentários em “Roger Waters – Us+Them Tour

  1. Prina, belo texto, caso haja mesmo uma nova turnê em 2021, quais músicas você faria questão de inclui-las?
    Eu pensaria primeiramente em faixas não utilizadas na Us + Them como Set the controls, Grantchester Meadows, If, Fearless, Have a cigar, Shine on..,Sheep, Two suns in the sunset e The Bravery Of Being Out Of Range. Tá bom? Parabéns pelas matérias.

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